O que a psicanálise diz sobre a felicidade?

O que a psicanálise diz sobre a felicidade?

A busca da felicidade governou e governa o anseio do homem em toda a história da humanidade. Basta notar a facilidade com que expressamos o desejo de felicidade:

“feliz Ano-Novo”, “feliz aniversário”, “feliz dia dos pais”, “feliz Natal” etc. 

Certamente esse afã tenta ser um antídoto contra as desgraças da vida, seus dissabores, a dor de existir, enfim, tudo aquilo que antes contraria a felicidade. Talvez por isso tais augúrios se levantem geralmente diante do futuro, a incerteza do amanhã. No entanto, não há termo que se preste a tantos sentidos, a tantas interpretações, a tamanha pluralidade de concepções; por isso a eterna pergunta: o que é felicidade?

O que é felicidade?

Qual é a resposta da psicanálise a essa eterna pergunta? O criador da psicanálise é contundente quando, nas cercanias do fim de sua obra, afirma sobre o prazer:

Este princípio governa a operação do aparato anímico desde o início; sobre seu caráter acorde a fins não resta dúvida; não obstante, seu programa entra em querela com o mundo inteiro, com o macrocosmo tanto quanto com o microcosmo. É absolutamente irrealizável, as disposições do Todo – sem exceção – o contrariam; pode se dizer que o propósito de que o homem seja “feliz” não está contido no plano da “Criação”.

No entanto, na sequência dessas afirmações, Freud assevera que a felicidade é episódica e parcial, afeita a contrastes e diferenças, intempestiva e nunca contínua. E prossegue:

Aquilo que, em sentido estrito, se chama felicidade corresponde à satisfação repentina de necessidades retidas, com alto grau de êxtase, e por sua própria natureza só é possível como um fenômeno episódico. Se uma situação ansiada pelo princípio do prazer perdura, em nenhum caso se obtém mais que um sentimento de leve bem-estar; estamos organizados de tal modo que só podemos gozar com intensidade o contraste, e muito pouco o estado. Já nossa constituição limita nossas possibilidades de felicidade.

A felicidade não é possível?

Você sabia que tanto Freud quanto Lacan acreditam em uma felicidade possível e a sustentam, mas somente depois de ter identificado a felicidade que não é possível?

Ecoa a conhecida afirmação de Borges: “Em todo dia, há um momento celestial e outro infernal”.

É interessante observar como hoje em dia nos espreitam as exigências de felicidade, os imperativos de dita, o dever de ser feliz o tempo todo. Mas a felicidade freudiana não é contrária a altos e baixos, visto que os supõe; essa felicidade emerge qual fênix, sempre entre cinzas. Ao tentar excluir a disparidade das tonalidades, não se eliminaria a felicidade em si? Paradoxalmente, o homem sempre eufórico seria o homem infeliz, dado que, quando a felicidade é regida pelo dever superegoico como exigência de perdurabilidade, deixaria de ser felicidade.

A influência de Schopenhauer

Sabe-se da influência de Schopenhauer tanto em Freud quanto em Borges, e não só neles, mas também em Nietzsche, em Karl Popper e em Emil Cioran, entre outros. Seguindo as doutrinas orientais, o filósofo alemão considera que o homem é escravo de seu desejo, de uma vontade cega que o conduz a um apetite irrefreável com que se consome em via de uma felicidade impossível, pelo desassossego resultante de tais cadeias. O pessimismo de Schopenhauer se fundamenta no fato de que as pretensões dos homens são ilimitadas, os anseios são inesgotáveis, os sonhos satisfeitos engendram repetidamente novas aspirações e nada satisfaz sua cobiça, nada põe termo a suas exigências, nada preenche “o abismo sem fundo do coração”.

No entanto, o pessimismo de Schopenhauer não é equivalente ao de Freud, uma vez que para este o caráter episódico da felicidade não a torna menos valiosa nem a faz, por isso, infeliz. O perecível não fica identificado com o fútil, como tão bem está expresso em um breve texto chamado “Sobre a transitoriedade” (vol. XIV), que, embora trate do prazer estético, é importante considerar aqui, porque alude ao valor do episódico.

Trata-se de uma homenagem simples e translúcida a Goethe, ao mesmo tempo que um canto à vida, em meio aos horrores da Primeira Guerra Mundial, então em seu segundo ano. Freud se limita a contar um caso. Passeando com dois amigos, um deles um jovem, embora já célebre, poeta, os caminhantes se sentem subitamente embargados pelo lindo entorno. Apesar de admirar a beleza da natureza circundante, o poeta não pode gozar em plenitude, pois lhe preocupa a ideia de que todo esse esplendor esteja condenado a perecer. Tudo, em suma, lhe parecia carente de valor pela transitoriedade a que está condenado e que, certamente pela impiedosa guerra, se faz ainda mais presente.

Uma análise limita necessariamente a proliferação dos anseios, estes que, além de tudo, são tão exacerbados pelo capitalismo. Pensemos de que maneira o mercado potencializa a gula do desejo e galvaniza a insatisfação que impulsiona ao consumo.

Freud reage diante da desestima do caráter perecível do belo ao indicar primeiramente que tal posição pode originar duas tendências psíquicas diversas: o amargurado fastio do mundo (caso do poeta) ou a rebelião contra a fatalidade, em outros termos, a negação da morte ou da aniquilação. No entanto, e sem negar a índole transitória do belo, afirma com implacável coerência que, ao contrário do que acredita o poeta, essa brevidade, longe de implicar sua desvalorização, aumenta seu valor devido a sua raridade no tempo. E o expressa dizendo que o valor de tudo que é belo e perfeito reside em sua importância para nossa percepção; não é mister que a sobreviva e, em consequência, é independente de sua perduração no tempo. O jovem poeta desvaloriza o belo, priva-se de seu gozo, subtrai-se ao prazer da contemplação do estético para evitar o previsível penar por seu desaparecimento. A fim de não se expor à dor e ao sofrimento, evita a experiência do prazer; não pode, então, experimentar tal gozo porque aquilo que é apreciado não garante duração no tempo.

O desejo e a felicidade

O que seria uma felicidade perdurável se jamais fosse experimentada? Logo nos damos conta de que não seria mais que uma felicidade suposta, sonhada, esperançada, que representa um obstáculo para vivenciar a felicidade possível. A desilusão sempre acompanha o desejo; mesmo quando alcançado o objeto perseguido, o desejo, longe de tender a um objeto como a seu fim próprio, constitui, a rigor, seu único e próprio fim. Infere-se que, então, para Schopenhauer, entre o desejo e a felicidade não há acordo, porque o desejo, como vontade sempre insatisfeita, leva à infelicidade.

Lacan diz que não é preciso levar a análise muito longe: “Quando um analisado pensa que está feliz por viver, é suficiente”. “Feliz por viver” seria uma felicidade não baseada na busca do ter nem no esperar, curada então dos desditosos desejos que a malogram. No fim de sua obra, o psicanalista francês dá muito mais lugar à satisfação que aos anseios que a dificultam, em uma orientação na qual se ressaltam os desejos mais reais.

Esse desacordo não escapa da compreensão de Lacan quando afirma que “A felicidade evita a quem não renuncie à via do desejo”. No começo de sua obra, concede um lugar privilegiado ao desejo, motor do aparato psíquico para Freud. No entanto, logo adverte que não se pode falar do desejo em geral, que nem todos têm o mesmo valor.

“Há também desejos vazios, desejos loucos, que não se tratam mais que de desejos, por exemplo, de algo que foi proibido.” O grande paradoxo que a psicanálise descobre é que não é exatamente o mesmo querer e desejar. Em outras palavras: podemos desejar algo que na realidade não queremos e que só ansiamos porque não se realiza; isso conduz, inevitavelmente, à insaciável busca de outra coisa, ou seja, ao afã de felicidade que encaminha à infelicidade. Em uma análise se deveria produzir um ajuste entre os dois termos; assim, Lacan afirma que “o sujeito está chamado a renascer para saber se quer o que deseja”, e esta é “a verdade que com a invenção da psicanálise Freud trazia ao mundo”. Não se trata, então, do mero desejar, mas de querer aquilo que se deseja.

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